sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Tropa da Elite


José Pedro Goulart
Eduardo Rocca/Terra

Polícia Federal em operação de combate à pirataria: "um furo no sistema, ué!"



Ok, você está cheio desse assunto; já leu a respeito, discutiu com os amigos, debateu no trabalho, na sala de aula, enfim. Bom, se é o seu caso, procure outras matérias, eu não vou me importar. Eu vou é botar a minha colher torta nesse bolo que, aliás, vem recheado com muita coisa, menos farinha.

Estou no shopping (onde mais poderia estar?), assistindo ao filme em questão. Há fúria na tela. Na platéia, setenta por cento de adolescentes estão imersos nessa fúria. A música urra: TROPA DE ELITE PEGA UM, PEGA GERAL, TAMBÉM VAI PEGAR VOCÊ - é punk, voz metaleira; o som dolby estéreo amplifica os tiros, os gritos. Atrás de mim um garoto de 16 repete alguns diálogos do filme - quantas vezes terá ele visto o filme para isso? O capitão Nascimento, o mocinho do filme, se culpa, se justifica, se purifica. Nessa ordem. O nome do capitão é Nascimento, veja só, e no filme ele espera o nascimento de um filho. E também torce para que nasça um novo capitão Nascimento. E o "Tropa de Elite" vê "nascer" um ideário de força e repressão que andava latente - mas contido - junto à população.

No Rio, um grupamento do BOPE passa em treinamento perto da praia. A galera pára o que está fazendo e se vira para aplaudir. No cinema, em várias sessões, foram testemunhadas verdadeiras ovações no final. Gritos de "caveira!!" foram ouvidos em outras. Parte da população vê no filme um modo de desatar o nó da questão da insegurança no país: é isso, é preciso reagir com força. O capitão Nascimento tem métodos discutíveis? Ok, mas o próprio filme inicia dizendo que a ação das pessoas depende das circunstâncias. E as circunstâncias no filme estão sempre justificando o arbítrio, a esquematização simplória entre um lado e outro. Os autores do filme avisam que o filme apenas coloca a problemática nas telas, e que o personagem vivido pelo Wagner Moura não é herói.

Mas é mentira.

É evidente que o filme glorifica o capitão Nascimento. Sujeito leal à corporação, incorruptível, que chega a brigar com a mulher quando se viu tomando uma decisão errada - por influência dela - e um companheiro morreu. Sujeito capaz de se enternecer diante de uma mãe que não pode velar o filho morto (então invade a favela e, em troca de alguns sopapos, desenterra o corpo). Nascimento "é" o filme, sua alma, sua justificativa. É por causa dele que o BOPE é aplaudido na rua. E é por causa dele que a polícia se sente liberada de atirar em bandidos correndo em um descampado de dentro de um helicóptero. É por causa dele, pela admiração que provoca, que o menino de 16 anos, atrás de mim no cinema, repete os diálogos do filme. A população baba, esbraveja, acompanha: Caveira!!

"Tropa de Elite" aponta: A culpa é do sistema! O sistema que cria policiais corruptos, o sistema que amordaça e impede que se saia dele. ONGs de mentira, passeatas pacifistas fajutas, jovens de classe média alta sustentando o tráfico. É o sistema. Contra ele a farda, a lógica da repressão e da tortura, a elite da tropa - só a elite é incorruptível. Já vimos esse filme nesse país. Será preciso reprisá-lo?

Aliás, os produtores do filme reclamam que o filme foi pirateado antes de chegar aos cinemas. Ótimo. A pirataria é um furo no sistema, ué. Só que num outro sistema - esse outro que o filme aparentemente desconsidera. Um sistema que cria sub-sistemas, como o da corrupção da polícia. Um sistema permanentemente cioso de suas razões. Um sistema, do qual eu e você fazemos parte, aliás; que precisa, necessita, torce e luta por uma Tropa de Elite que o proteja. E o mantenha.


José Pedro Goulart é jornalista, cineasta e diretor de filmes publicitários.

Fale com José Pedro Goulart: zp.zeppelin@terra.com.br

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