quarta-feira, 22 de agosto de 2007

A insustentável bioenergia do milho

Por José Graziano

Mesoamérica - composta pelos países da América Central e México - é hoje a sub-região da América Latina onde estamos perdendo a luta contra a fome. Segundo dados da FAO, entre 1990/92 e 2002/04 o número de pessoas subnutridas na região passou de 9,6 para 12,8 milhões de pessoas, um aumento de 33%, ou seja, 3,2 milhões de pessoas em 10 anos. E é uma miséria que se concentra nas áreas rurais que poderiam ser grandes produtoras de alimentos.


A fome na Mesoamérica tem a cara de uma criança indígena de descendência maia ou asteca. São os piores índices de desnutrição infantil da América Latina e Caribe: uma de cada quatro crianças com menos de 5 anos está desnutrida. Em países como a Guatemala quase metade das crianças com menos de 5 anos está desnutrida, proporção essa que aumenta para 80% entre os indígenas. São níveis de desnutrição superiores aos do Haiti e de países mais pobres da África.


No livro sagrado maia 'El Popol-Vuh', lê-se que os deuses necessitavam povoar o mundo com um ser civilizado. Depois de tentar criar humanos com madeira e fracassar, escolheram o milho como matéria-prima. Durante milhares de anos os povos mesomaericanos tiraram seu sustento do milho e seus derivados. A tortilha com feijão, por exemplo, responde por 40% das proteínas que os mexicanos consomem, segundo pesquisa da Universidade Autônoma de México.


Mas a produção de milho da Mesoamérica há muito já não atende sua demanda. Em 2005, as importações mexicanas de milho alcançaram US$ 730 milhões. Os países centro-americanos importaram outros US$ 330 milhões. Somados, os sete países da Mesoamérica respondem pela importação da metade do milho dos 33 países do continente, quase todo ele proveniente de exportações norte-americanas fortemente subsidiadas. Muitos dos países da sub-região promoveram uma abertura indiscriminada de suas economias, comprometendo as atividades dos seus pequenos agricultores. Repete-se no século XXI uma política de importação de excedentes de produtos alimentícios subsidiados nos países desenvolvidos similar a que destruiu a capacidade de produção do continente africano a partir dos anos 70 do século passado.


Não é sem razão, portanto, que o presidente Daniel Ortega, da Nicarágua, que quer estimular a agricultura familiar como parte do seu programa Hambre Cero, não é um entusiasta dos biocombustíveis. Ele teme que a política americana de utilizar excedentes de milho (os EUA são os maiores exportadores mundiais) agrave ainda mais a desnutrição na região. Não só porque o milho aí é um alimento básico, mas também porque é um insumo genérico que faz parte de muitas cadeias agroalimentares, começando pela produção de carnes e de leite.


Mas também tem razão o presidente Lula ao defender o álcool de cana-de-açúcar. E quem diz isso é o próprio secretário-geral da OEA (Organização dos Estados Americanos), José Miguel Inzulza. Na abertura da IV Reunião Ministerial sobre Agricultura e Vida Rural que se realizou recentemente na Guatemala, ele reconheceu "o potencial que tem a produção de agroenergia a partir da cana, assim como sua capacidade de promover o desenvolvimento agrícola".



A energia contida no álcool da cana-de-açúcar é mais de oito vezes maior que a energia fóssil utilizada para produzi-lo


Reproduzo suas palavras: "Desejo destacar particularmente o caminho aberto nesse âmbito pelo Brasil, ao dedicar parte da sua produção de cana-de-açúcar para a elaboração de etanol (.) Com isso conseguiu diversificar consideravelmente suas fontes de energia e aumentar sua auto-suficiência energética(.) O Painel de Mudanças Climáticas da ONU recomenda o uso de etanol de cana porque causa menor impacto no meio ambiente que o de milho. Trata-se, por outro lado, de uma produção que não deixa resíduos, pois tudo é reciclado para enriquecer o solo, e a própria cana é uma grande absorvedora de carbono, ajudando por si mesma a reduzir os gases do efeito estufa."


"A produção de etanol (no Brasil) não constitui uma ameaça à produção de alimentos (.) Recentemente os governos do Brasil e Estados Unidos acordaram ampliar (..) a produção de etanol. Trata-se de uma iniciativa muito digna de destacar e que esperamos encontre eco em outros países da nossa região, como também esperamos que se amplie com outros gestos, particularmente a redução de barreiras protecionistas à importação de etanol produzido com cana que, como se sabe, é muito mais barato que outros combustíveis (atualmente seu custo não chega à metade da gasolina ou do diesel), inclusive do que o etanol produzido de outras fontes, como o milho, que tem um custo de US$ 1,30 por galão, mais alto que o produzido com cana, que não supera um dólar por galão."


Mas não esta só no custo a vantagem da cana. A energia contida no álcool de cana é mais de 8 vezes maior que a energia fóssil utilizada para produzi-lo; no milho essa relação é um pouco maior que um, o que significa que a energia contida em um litro de álcool de milho é quase igual à que se consome para produzi-lo. Por isso, a produção de 1m³ de álcool de cana permite a redução de 2,6 toneladas de CO2, uma arma importante na corrida para reduzir a tendência de aquecimento global via efeito estufa. Leia mais no Valor (para assinantes)

Jose Graziano da Silva é representante regional da FAO para América Latina e Caribe.

Nenhum comentário: