domingo, 24 de junho de 2007

O divórcio das elites

Curtam o prazer de uma grande reportagem, com um fecho magistral. Luiz Nassif

por Maria Cristina Fernandes, no “Valor

O filósofo José Arthur Gianotti era a imagem da impaciência. O ex-secretário de Imprensa da Presidência da República e hoje professor do Departamento de Ciência Política da USP, André Singer, discorria sobre as mudanças ocorridas nas elites com o governo Luiz Inácio Lula da Silva, e Gianotti gesticulava, contrariado, até que se levantou e passou a andar em círculos numa pequena sala do Instituto de Economia e Estudos Internacionais, no décimo andar de um prédio à marginal do Rio Pinheiros, em São Paulo.

"Estou andando porque sentado não aguento", disse Gianotti ao lhe ser franqueada a palavra. O filósofo contestava a definição dada à elite como grupo que sobrepuja o poder de outro. "Marcola faz parte da elite? Por essa definição, faria, já que demonstrou capacidade de entranhar-se no aparelho de Estado".

O filósofo também esbanjava impaciência com mais um exemplo de nova elite usado por outro palestrante da noite, Luciano Martins, ex-embaixador do Brasil em Cuba no governo Fernando Henrique Cardoso. Ele citara estatísticas indicando que 31% da carne bovina consumida no mundo são produzidas no Brasil. E dissera ser significativo que setores estejam avançando sem que uma nova casta de lideranças empresariais tenha se formado.

De pé, Gianotti foi taxativo: "Não se pensa o país a partir do Marcola ou do empresário que está criando bois. Elite implica em autoridade e refinamento. Não é o refinamento do saber comer, ainda que isso faça parte. Estamos perdendo a concepção da parte da sociedade que pensa o país. Para ter projeto no país não é preciso ser grupo dominante".

Reunia-se ali um refinado grupo pensante. O debate havia sido proposto em forma de pergunta - "As novas elites no Brasil?" - e atraíra, além de Gianotti, Martins e Singer, o sociólogo Leôncio Martins Rodrigues, o ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira e professores da USP que integraram o governo FHC, como José Álvaro Moisés.

O debate começou pela definição de Martins de quatro novos tipos de lideranças empresariais - altos executivos, dirigentes de fundos de pensão, "candidatos a George Soros" - citou Daniel Dantas, Eike Batista e Armínio Fraga - , e consultores que migram entre a burocracia e a direção de empresas privadas . Não via, em nenhuma dessas categorias, chances de surgirem lideranças do porte de Roberto Simonsen, que mantinha correspondência diária com Souza Costa, ministro da Fazenda de Getúlio Vargas.

Mas a polêmica esquentou mesmo quando, constatada a ausência de lideranças empresariais significativas, passou-se à análise da elite política surgida com a ascensão sindical. Leôncio Martins Rodrigues, que tem livro sobre o tema ("Mudanças na Classe Política Brasileira") citou 17 ocupantes do 1º escalão no governo Lula, governadores e parlamentares de trajetória semelhante - na condição de dirigentes sindicais fizeram grandes greves e saíram direto para a disputa na Câmara. "É uma mudança dificilmente reversível. Mesmo com outro presidente, eles chegaram ao Congresso e não mais sairão de lá".

Foi a deixa para Singer citar o austríaco Joseph Schumpeter e a teoria de que a democracia só existe quando há dois grupos em disputa. O ex-secretário de Lula disse que foi apenas em 2002, com a efetiva alternância de poder, que a democracia se consolidou no país.

Bresser foi o primeiro a contestá-lo. Disse não ter visto grande mudança em 2002 porque os sindicalistas e a nova elite política promovida pela eleição de Lula não têm poder algum.

Maior guinada, para ele, acontecera com o colapso do Plano Cruzado, quando o pacto entre a Aliança Democrática e a burguesia industrial, que havia conduzido a transição, fracassara.

"Daí veio a crise que durou até o Plano Collor. Com a derrocada deste, assumem Marcílio Marques Moreira, a Fazenda, e Armínio Fraga, o Banco Central. Firma-se o acordo com o FMI e forma-se uma nova coalizão de poder comandada pelo setor financeiro, rentistas, multinacionais e interesses estrangeiros no país".

Bresser não sofreu objeções e o debate prosseguiu na seara da democratização da classe política. Moisés disse que essa popularização não foi acompanhada de um maior controle social sobre os governantes. Luciano Martins encurtou o caminho da polêmica argumentando que, além da democratização, assiste-se hoje à "completa desmoralização do projeto democrático".

Chegou a vez de Singer defender o que chamou de 'nosso governo'. Disse não ter visto a mesma indignação dos intelectuais ali presentes quando foi noticiada a compra de votos na aprovação da emenda da reeleição. Sem ser contestado, seguiu em frente. Disse que este governo pode não ter um projeto pronto e acabado de país, mas segue uma idéia de "inserção soberana no contexto internacional" - "Não continuou as privatizações, fortaleceu o Estado, expandiu direitos, reforçou os controles da Polícia Federal e promoveu inclusão com consumo de massa".

O presidente do Instituto, Gilberto Dupas, entrou para arrematar. Disse ver com preocupação a ascensão dessa nova elite no momento em que o índice de sindicalização declina mundo afora e reformas trabalhistas colocam em xeque até mesmo as resistentes lideranças sindicais francesas: "A ascensão do PT, nesse momento, leva a uma tentativa - legítima, é verdade - do encastelamento do sindicalismo no Estado na tentativa de garantir interesses que, de outra maneira, não seriam capazes de defender. Isso acontece num momento de ausência de projeto. FHC comprou a idéia de que bastava abrir a economia. Lula fez a Carta aos Brasileiros ao perceber que sem as elites não governaria. Num e noutro governo, o país cresceu pouco e perdeu oportunidades".

A palavra foi franqueada, mas o debate já havia perdido o fôlego. A indignação naquela platéia quase que exclusiva de professores, concentrava-se, em meio às despedidas, nos alunos em greve - "Não conheço mais o jovem tatuado a quem dou aula". Estava ali, naquele desconhecimento, a chave tão longamente discutida, do divórcio entre as elites e o país.

Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras


enviada por Marília do Blog de Luis Nassif

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